A década de 90 foi a mais complicada na história do Zenit e também da Rússia como um todo. Essa década foi cheia de acontecimentos estranhos na maior parte das vezes assustadores e de aventuras que agora podem ser engraçadas de se ler mas que foram muito complicadas para quem as viveu. A revista do clube “O nosso Zenit”, juntou em Outubro de 2012 algumas das melhores histórias contadas por ex-jogadores, dirigentes e treinadores do clube e que agora passamos para Português. Para ler e reler.
Vyacheslav Melnikov, campeão soviético com o Zenit em 1984 e treinador do clube entre 1992-1994
“Após o campeonato de 1991 era suposto termos descido de divisão. Mas com o colapso da União Soviética nesse ano fomos autorizados a ficar na primeira liga, tal como muitas outras equipas foram. Nós não estávamos preparados para jogar nessa divisão, nem em termos monetários nem na nossa capacidade em campo.
O governo de Leningrado não tinha tempo para se preocupar com o Zenit. A cidade é enorme e havia falta de tudo nessa altura- desde sopa até aos cigarros. Assim sendo havia muitas situações com que a cidade tinha de gastar o seu tempo e o Zenit não era prioridade. O Rotor era um clube mais sólido no início dos anos 90. Goryunov, antigo presidente do clube, manteve o clube muito bem nessa altura. Ele era ajudado pela Hope-Invest, uma empresa de esquemas em pirâmide. O Spartak também era forte nessa altura, até pelas suas conexões ao regime soviético. Dima Radchenko estava lá portanto era fácil de saber que o clube tinha um bom apoio financeiro. Havia também outro clube, o Asmaral, que pertencia a Al-Khalidi, um homem de negócios que meteu muito dinheiro no clube. As perspectivas para essa época eram muito baixas e foi por isso que Morozov decidiu deixar o clube um mês e meio antes da época começar. Mas não o podemos criticar. Ele não queria arriscar a sua reputação.
Relativamente aos equipamentos a coisa não foi completamente má para nós. Nessa altura a Diadora estava à procura de novos mercados e eles concordaram em dar-nos equipamentos e chuteiras em troca de publicidade. Cada um de nós teve direito a dois pares de chuteiras. A equipa treinava num campo lamacento e as sapatilhas e chuteiras não duram muito nesse tipo de piso. Não tínhamos dinheiro para comprar o nosso próprio calçado e mesmo que o tivéssemos… não havia local onde o pudéssemos comprar.”
Yury Gusakov, jogador do Zenit de 1991 a 1993, administrador do clube de 1997-2001, team manager de 2002-2003 e administrador da equipa desde 2006
“Os jogadores levavam todos os equipamentos de treino e o administrador da equipa só ficava responsável pelos equipamentos de jogo. Aos jogadores eram dados equipamentos com os números do 1 ao 11, portanto às vezes acontecia que jogadores muito baixos ficassem com camisolas XL. Os jogadores tinham um equipamento para toda a época e eram eles próprios a lava-lo. Não havia lavandaria no clube nos anos 90. Com as chuteiras era o mesmo. Havia um sapateiro na equipa nessa altura, de nome Boris e nós dávamos-lhe muito trabalho para fazer. Mas nós próprios também tratávamos das chuteiras.”
Vyacheslav Melnikov
“Usávamos o campo de treinos para nos prepararmos para os jogos e íamos para o Parque Udelny nos dois ou três dias antes do jogo. As instalações onde vivamos cingiam-se a dois edifícios antigos que não foram reparados até o Mutko vir para o clube. Lembro-me de uma vez que o sistema de abastecimento de água congelou e todos os tubos quebraram-se. Foi necessário procurar outro sítio para viver durante algum tempo e acabamos por ser autorizados a ficar no motel Oktyabr. No Verão também não havia água quente, pois o esquentador não funcionava. Eles aqueciam a agua na sauna quando havia electricidade, pois às vezes ela era cortada por falta de pagamento. No entanto as instalações de treino eram uma ilha onde cada um de nós se escondia dos problemas. Só tínhamos de pensar em futebol lá e ao menos sempre podíamos comer. Até isso era muito valioso para muitos de nós.”
Yury Gusakov
“Na altura o refrigerador no centro de treinos era uma janela aberta com uma rede e as camas eram como a dos comboios, muito estreitas e desconfortáveis. Tínhamos uma sala para ver filmes com um projetor. Tudo o que passava nessa altura no cinema era depois também mostrado a nós. Ninguém quebrava as regras antes dos jogos. Os jovens jogadores que vieram para o Zenit, incluindo eu, viviam no centro de treinos. Um cozinheiro costumava lá ir e fazia-nos a comida, portanto as coisas até eram agradáveis para nós.”
Dmitry Davydov: jogador do Zenit de 1994 a 2002
“Quando eu o Ugarov e o Panov chegamos à equipa principal o centro de treinos resumia-se a dois barracões. Os quartos eram partilhados por duas pessoas. Também havia uma sala com bilhar e outra para ver filmes e aprender teoria de futebol. 2 dos campos tinham realmente relva mas um estava sempre todo cheio de agua por causa de umas arvores que não deixavam uma parte do relvado secar. Demorou muito tempo até que essas árvores fossem cortadas. Diria que no Zenit se vivia muito bem para os anos 90. O campo de treino era no Chelyuskintsev Park e quem vinha para a equipa arrendava apartamentos numa zona muito próxima.
Naquela altura toda a gente jogava cartas, bilhar e dardos. Agora não são tão populares entre os jogadores. Depois haviam os jogos normais: xadrez, damas e gamão. O melhor jogador de xadrez era o Anatoly Ivanovich, que era quem ajudava a levar as bolas e guarda-las. Entre os jogadores os melhores xadrezistas eram o Dmitry Bystrov e o Sergey Dmitriev. Haviam muitos futebolistas a jogar xadrez mas nunca realizamos nenhum torneio.”
Vyacheslav Melnikov
“Em 1992 fomos a França para um estágio. O Zenit estava a preparar-se para a Primeira Liga e fomos enviados para Le Havre, que é uma cidade irmã de São Petersburgo. Num encontro com a direção do clube local ficamos interessados em saber quanto ganhavam os jogadores e staff do clube. Mais do que isso, queríamos ver a sua reação quando disséssemos o nosso ordenado. Lembro-me do valor como se fosse ontem. Eram 100-150 dólares por mês. Os franceses pensavam que era engano do intérprete.
Os nossos salários eram suficientes para sobreviver à fome. De todos os jogadores apenas um tinha carro. E além do carro para o treinador o clube só tinha mais um carro. Um Volga que era usado pela direção.
Houve uma vez que recebemos o equivalente ao nosso ordenado em chuteiras. Um acordo foi feito em Smolny em como uma firma de nome Lenvest nos ia ajudar. Em contrapartida eu tinha de ir visitar a fábrica. O que pode um treinador fazer mais? Tentei fazer um acordo para que fossem oferecidos mais uns pares de botas para o clube. Era quase como se eu fosse um vendedor dessas botas.
Andar pela cidade era assustador. Muitas vezes fomos ameaçados com intenções de resultados combinados. Nunca ninguém veio ter connosco, mas ao telefone eram constantes as ameaças. Obviamente que nenhum dos representantes das várias equipas veio a público confessar isto. Os nossos salários eram pagos em dólares mas não era fácil trocar moeda estrangeira na cidade. Podíamos ser enganados ou simplesmente roubados. Lembro-me de vários casos desses.